segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Um Artista da Fome e Kafka: A Necessidade da Arte

A história Um Artista da Fome, de Franz Kafka, foi lançada no ano de 1922. Posteriormente, em 1924, foi título de seu último livro de contos, publicado pouco antes de sua morte.

kafka
Franz Kafka

Narrado em terceira pessoa, Um Artista da Fome esquadrinha a vida de um “talentoso jejuador”. O homem viajava por várias partes do mundo com seu espetáculo , que consistia em ficar 40 dias sem comer nada. O esquálido artista se expunha numa jaula, sendo o grande atrativo da exibição.
Para garantir que sua abstinência não passava de um blefe, sua gaiola sempre estava altamente vigiada por homens que se revezavam em plantões. Tanto os vigilantes quanto o artista sabiam que seria desnecessário tal cuidado, mas para garantir a credibilidade ao povo, tomava-se tal atitude. Na seguinte passagem do conto, lemos:
“Mas isso era apenas uma formalidade introduzida para tranquilizar as massas, pois os iniciados sabiam muito bem que o jejuador, durante o período da fome, nunca, em circunstância alguma, mesmo sob coação, comeria alguma coisa, por mínima que fosse: a honra de sua arte o proibia.” (página 12)
O ambiente em que o artista vivia era, basicamente, na jaula que, além das palhas, tinha um único objeto: um relógio. Através dele, o artista media sua capacidade de fidelidade à sua arte. Se dependesse do protagonista, deixaria de comer para sempre, mas seu empresário estabelecera um prazo:
“O empresário havia fixado em 40 dias o prazo máximo de jejum, acima disso ele nunca deixava de jejuar nem nas grandes cidades do mundo.” (páginas 13 e 14)
No quadragésimo dia, o tão esperado momento do “artesão” quebrar seu jejum, era o instante de festa. Abria-se a jaula, moças bonitas serviam-lhe um banquete cuidadosamente selecionado, músicos tocavam, fotógrafos o clicavam e a platéia aplaudia. Se tal hora era o ápice para o espectador, para o artista era uma situação que desmerecia seu ofício:
“Por que queriam privá-lo da glória de continuar sem comer, de se tornar não só o maior jejuador de todos os tempos- a coisa que provavelmente já era- mas também de superar a si mesmo até o inconcebível, uma vez que não sentia limites para a sua capacidade de passar fome? Por que essa multidão, que fingia admirá-lo tanto, tinha tão pouca paciência com ele?” (página 14)
Para o artista, limitar sua abstinência era um desrespeito, uma não compreensão de seu trabalho. Sua arte consistia em não comer, a comida dava-lhe náuseas. O tempo mudou e novas formas de atrações surgiram; o espetáculo da fome, antes tão aclamado, agora é motivo de repulsa. Vendo que sua platéia desaparecia, o artista demite seu empresário e se emprega num circo.
Em novo ofício, o homem cuidava dos estábulos e das gaiolas dos animais. Nos intervalos das grandes atrações, aguardava ansioso que alguém o identificasse, mas raras vezes isso acontecia; as pessoas estavam ali para admirarem os animais. Quando um pai o reconhecia e explicava para seu filho qual era a habilidade do artista, tal relato causava espanto à criança, que perguntava: Por que não comer?
Independente de reconhecimento, o mestre da fome nunca deixou de jejuar. Certo dia, o inspetor do circo percebe que uma jaula está vazia e pergunta o motivo. É neste átimo que um funcionário recorda-se do artista. Quando foram verificar, o homem estava debaixo das palhas. Já muito fraco e definhando, diz suas últimas palavras:
“Eu não pude encontrar o alimento que me agrada. Se eu o tivesse encontrado, pode acreditar, não teria feito nenhum alarde e me empanturrado como você e todo mundo.” (página 19)
Após sua morte, o homem é enterrado entre as palhas e sua prisão torna-se o lar de uma linda, jovem e bem alimentada pantera. Em oposição a situação do homem, a imagem do bicho dava um alívio sensível, e os espectadores, apesar de temerem assombroso animal, não conseguiam parar de admirá-lo.
Basicamente, esse conto traz em suas linhas algumas das maiores características da narrativa Kafkiana: a ausência da dignidade humana, fazendo o homem se assemelhar a um animal ou, até mesmo, inferiorizar-se a ele. Em Prismas- Crítica cultural e sociedade, Theodor Adorno escreve:
“Os personagens de Kafka são recomendados a deixar suas almas no guarda-roupa no instante da luta social, na qual a única possibilidade do indivíduo burguês consiste na negação de sua própria composição e da situação de classe que o condenou ao que ele é. Kafka fica do lado dos desertores. Em vez da ideia de dignidade humana, conceito supremo da burguesia, aparece em Kafka a ideia da salutar semelhança do homem com o animal, presente em grande parte de suas narrativas.” (Página 268)
Outra questão salutar é a narrativa impactante de Kafka. À primeira vista, a história causa estranheza para quem a lê. Um Homem dedicar-se à fome parece algo, no mínimo, absurdo. As descrições certeiras e cruas perturbam o leitor. A respeito do estranhamento das personagens Kafkianas, lemos em Adorno:
“Um dos pressupostos mais importantes de Kafka é que a relação contemplativa entre o leitor e o texto é radicalmente perturbada. Os seus textos são dispostos de maneira a não manter uma distância constante com sua vítima, mas sim excitar de tal forma os seus sentimentos que ela deve temer que o narrado venha em sua direção, assim como as locomotivas avançam sobre o público na técnica tridimensional do cinema mais recente. Essa proximidade física agressiva irrompe o costume do leitor de se identificar com as figuras do romance. ” (página 241)
Ainda sobre o conto, há quem diga que seja o texto mais autobiográfico de Kafka. Se atentarmos para as inúmeras cartas que o autor escreveu, tal hipótese faz todo o sentido. O protagonista da história é um vocacionado para a abstinência. Ele vive para a sua arte e jamais conseguiria deixar de praticá-la. Independente de ser apreciado ou não, o artista da fome não consegue viver de outra maneira, o seu jejum, paradoxalmente, é vital. O momento de consagração de seu ofício, tão indesejado pelos outros e tão ambicionado pelo homem, é a morte.
Assim como o artista da fome, Kafka nunca escondeu que vivia para a sua arte, isto é, a Literatura. Kafka nunca escondeu que a Literatura era um vício e, se pudesse, dedicar-se-ia somente ao ato da escrita. O autor anotou em um de seus diários a seguinte passagem:
“Acho insuportável o meu emprego porque colide com o meu único desejo e a minha única vocação, que é a literatura. Uma vez que não sou mais nada senão literatura, e não posso nem quero ser outra coisa, o meu emprego nunca me dominará, mas pode no entanto despedaçar-me completamente, e isto não é, de modo algum, uma possibilidade remota.” (Página 230).

Tanto o autor quanto o personagem identificam-se pela necessidade desenfreada e incontestável de praticarem suas artes. Kafka e seu protagonista apenas almejavam a incessante realização de suas vocações.
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