terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

A maldição goethiana: a maior onda de suicídios em massa da história da literatura


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A morte de Werther, por Baude
Minha alma inunda-se de uma serenidade maravilhosa, harmonizando-se com a das doces manhãs primaveris que procuro fruir com todas as minhas forças. Estou só e abandono-me à alegria de viver nesta região criada para as almas iguais à minha. Sou tão feliz, meu amigo, e de tal modo mergulhado no tranquilo sentimento da minha própria existência, que esqueci a minha arte. Neste momento, ser-me-ia impossível desenhar a coisa mais simples; e, no entanto, nunca fui tão grande pintor. Quando, em torno de mim os vapores do meu vale querido se elevam, e o sol a pino procura devassar a impenetrável penumbra da minha floresta, mas apenas alguns dos raios conseguem insinuar-se no fundo deste santuário; quando, à beira da cascata, ocultas sob arbustos, descubro rente ao chão mil diferentes espécies de plantas; quando sinto mais perto do meu coração o formigar de um pequeno universo escondido embaixo das folhagens, e são insetos, moscardos de formas inumeráveis cuja variedade desafia o observador, e sinto a presença do Todo Poderoso que nos criou à sua imagem, o sopro do Todo-Amante que nos sustenta e faz flutuar num mundo de tenras delícias [...]. (Trecho de Os sofrimentos do Jovem Werther.)
Numa época em que os grandes meios de comunicação como o rádio, o cinema, a TV e a internet ainda eram embriões inexistentes de um futuro abruptamente (e caoticamente) tecnológico, a literatura era uma das vertentes mais aclamadas do campo das artes (juntamente com a imprensa), responsável por causar um verdadeiro impacto na vida cultural, política e ideológica na história do homem. Por isso a grande importância das escolas literárias, que desencadearam rupturas não apenas estéticas, porém, sobretudo, no modo de pensar e agir da sociedade; corroborando na emancipação e quebra de paradigmas de toda espécie imposta pela ordem mundial.
No século 18, um poeta e escritor alemão chamado Johann Wolfgang Goethe marcaria época em seu país ao legitimar a grande escola romântica que influenciaria uma legião de escritores no mundo todo, causando, de primeira, um verdadeiro boom com a publicação de Os sofrimentos do jovem Werther, romance epistolar de 1774, onde o seu protagonista, um rapaz da alta aristocracia alemã, troca correspondências com um amigo chamado Guilherme, contando sobre suas viagens e experiências cotidianas (vide ao parágrafo introdutório do artigo), até o encontro com a bela Charlotte — encontro este que mudará para sempre a sua vida, resultando em uma paixão avassaladora que o levará ao deslumbre do primeiro grande amor juvenil, seguido progressivamente ao próprio aniquilamento existencial.
Embora ambos, Werther e Charlotte, vivam, de fato, uma estória de amor, o rapaz não pode ser correspondido completamente por sua amada, já que a mesma é casada com outro homem. Werther, por sua vez, não vê outra saída e põe um fim em sua vida, dando um tiro na própria cabeça. O momento de seu suicídio é um dos episódios mais comoventes do livro e, considerado por muitos, da história da literatura. O tom realístico e perturbador do romance provocou uma verdadeira comoção entre os jovens da época, que atraídos pelo espírito passional e depressivo de seu respectivo protagonista, resolveram seguir o mesmo rumo pondo fim em suas próprias vidas.
Foi grande o número de suicídios relacionados à leitura do pequeno-grande romance de Goethe, tornando-se rapidamente uma obra maldita para a igreja. Na psicanálise criou-se um termo chamado Efeito Werther[1], em referência ao personagem e caracterizado por sua fenomenologia suicida. Geralmente esse comportamento adquire maior influência quando se tratando de celebridades ou figuras públicas — como já ocorreu, segundo pesquisas, na mesma época, com as mortes da atriz Marilyn Monroe e do músico Kurt Cobain (dois grandes jovens ícones imortalizados da cultura pop).
MARILYN E KURT
Marilyn Monroe (à esquerda) e Kurt Cobain (à direita). Dois jovens ícones da cultura pop, tendo em comum desfechos prematuramente trágicos.
De fato, é um tema de sumo delicado, onde se trafega a “banalização da morte” e uma “glamourização” do tema suicídio, através de uma inclinação voltada para os grandes heróis midiáticos que morreram da mesma forma trágica. Goethe defendeu-se dizendo que seu romance nunca fora escrito com o intuito de estimular ou incidir o suicídio entre os seus leitores. Evidentemente que não, como tampouco Marilyn e Kurt foram culpados por potencializar um aumento no número de suicídios de um determinado grupo de pessoas, durante o período de suas mortes. Embora haja um paradoxo nessa questão.
Gustavo Melo Czekster, escritor e mestre em Literatura Comparada, argumentou sobre o assunto através do impacto sociológico da obra de Goethe:
Até o século XVIII, pode-se dizer que a sociedade influenciava a literatura e era o espelho dela, em especial na Alemanha, onde os ideais iluministas e a busca da razão representavam o movimento artístico chamado de Aufklärung (filosofia das luzes). Com a publicação de Werther e o surgimento do Romantismo, a literatura pela primeira vez deixou os livros e passou a influenciar a sociedade, as suas questões, os seus costumes, as suas tradições e até mesmo as suas vestimentas.
Czekster complementou ainda ao falar da relação extremamente íntima da literatura com a psicanálise:
É fato conhecido que Freud era um grande leitor de Shakespeare e de Dostoiévski e, destas leituras, alguns conceitos basilares da psicanálise acabaram se originando. Por mexer com as pulsões mais inatas do ser humano e tentar desvendar as suas facetas, a literatura constitui em uma fonte capaz de elucidar a prática psicanalítica, ao ponto de Freud ter afirmado que “onde quer que eu vá, descubro que um poeta esteve lá antes de mim”. A psicanálise implica em conhecer os meandros do inconsciente humano, e nada melhor do que a literatura para iluminar os caminhos por onde a análise psicanalítica acabará passando.
Ainda que a onda suicida relacionada a Werther tenha se alastrado pela Europa, a obra em si, por sua vez, fora evidenciada pela crítica com grande entusiasmo. Afinal, não se tratava apenas de um romance epistolar como já escrito por alguns outros escritores de sua época, porém Goethe traduziu com grande maestria os sentimentos díspares da natureza humana sob o seio de uma paixão que deslumbra ao mesmo tempo em que dilacera obscuramente a vida de um ser.
Johann_Wolfgang_Goethe_1
Johann Wolfgang Goethe, autor de Os sofrimentos do jovem Werther e um dos escritores mais influentes da literatura alemã.
Goethe, mesmo antes de Fausto, sua outra obra-prima — um poema em prosa que viria ser publicado posteriormente em 1819 —, tornou-se um dos mais cultuados nomes da literatura alemã. Os sofrimentos do jovem Werther foi escrito em quatro semanas, e seu respectivo autor gabava-se dizendo que Napoleão havia lido o seu “livrinho” por sete vezes consecutivas e o carregava sempre em sua biblioteca de campanha.
A vida humana não passa de um sonho. Mais de uma pessoa já pensou nisso. Pois essa impressão também me acompanha por toda a parte. Quando vejo os estreitos limites onde se acham encerradas as faculdades ativas e investigadoras do homem, e como todo o nosso trabalho visa apenas a satisfazer nossas necessidades, as quais, por sua vez, não têm outro objetivo senão prolongar nossa mesquinha existência; quando verifico que o nosso espírito só pode encontrar tranquilidade, quanto a certos pontos das nossas pesquisas, por meio de uma resignação povoada de sonhos, como um presidiário que adornasse de figuras multicoloridas e luminosas perspectivas as paredes da sua cela… tudo isso, Wilhelm, me faz emudecer. Concentro-me e encontro um mundo em mim mesmo! Mas, também aí, é um mundo de pressentimentos e desejos obscuros e não de imagens nítidas e forças vivas. Tudo flutua vagamente nos meus sentidos, e assim, sorrindo e sonhando, prossigo na minha viagem através do mundo. (Trecho de Os sofrimentos do jovem Werther.)
O que se sabe é que o romance foi inspirado em duas histórias reais. A primeira sobre o seu próprio envolvimento com uma mulher casada chamada Carlota Buff, embora mudando os nomes dos personagens e de alguns lugares retratados no livro, na tentativa de que não ficasse muito evidente. Já a segunda, a autoficção goethiana envereda-se para outro episódio em que o escritor acabou tomando conhecimento pelo próprio marido de sua amante, Johann Kestner, ao enviar-lhe uma carta informando sobre uma tragédia, o que o ajudou a finalizar a sua obra. Desta vez, tratava-se do caso de um rapaz que também se apaixonara perdidamente por uma mulher casada com um membro do mesmo círculo de amigos; porém diferente de Goethe, o jovem de nome Carl Wilhelm Jerusalém suicidou-se com um tiro de espingarda tomado por uma profunda depressão desencadeada pelo clímax do amor amante.
Como aquela imagem me persegue! Quer eu vele, quer eu sonhe, ela enche a minha alma inteira. Aqui, quando cerro os olhos, aqui, na minha fronte, no lugar onde se concentra a força visual, encontro os seus olhos negros. Aqui! Não, não sei exprimir—te isso. Se fecho os meus olhos, eles permanecem ali, como um mar, como um abismo, repousam diante de mim, alagam minha fronte.
O que é o homem, esse semideus louvado! Não lhe faltam as forças precisamente no momento em que mais precisa delas? E quando ele toma voo na ventura, ou afunda na tristeza, não será ainda aí limitado à força e sempre reconduzido ao sentimento de si próprio, ao triste sentimento da sua pequenez, justo quando contava perder-se na imensidão do infinito?  (Trecho de Os sofrimentos do jovem Werther.)
A autoficção corroborada com o ingrediente trágico, unindo dois fatos paralelos, embora com desfechos completamente desassemelhantes, transformou Goethe e Jerusalém em Werther, e imortalizou a obra — a mesma que provocou uma verdadeira onda de suicídios em massa — como uma das mais belas composições em prosa da escola romântica da história da literatura.

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