terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Quando Borges recebeu ‘A memória de Shakespeare’


Borges revelou a Osvaldo Ferrari que teria recebido o argumento do conto A memória de Shakespeare em um sonho.

Borges
O escritor argentino Jorge Luis Borges representou uma ruptura na literatura latino-americana. Assim como o Brasil, a Argentina também era um país que produzia os “romances de costumes”. Até Borges. Ainda jovem, aquele que se tornaria o mais famoso escritor argentino organizou junto com Adolfo Bioy Casares e Victoria Ocampo a Antologia de Literatura Fantástica, um projeto que procurava apenas ser uma seleta dos textos de ficção preferidos dos três. Contudo, a antologia trouxe à América Latina a magia da literatura fantástica. Magia esta que viria a influenciar nomes como Julio Cortázar e Gabriel Garcia Márquez.
Mais que um antologista ou uma enciclopédia literária, Borges foi um criador de contos fantásticos no momento em que a literatura se voltava para o “romance psicológico”. Inúmeras vezes, declarou não acreditar em uma literatura realista, ou pelo menos nesta expressão. O gênero seria uma moda passageira, segundo ele, no contexto de uma produção literária milenar da humanidade.

A memória de Shakespeare

Em uma série de entrevistas que concedeu na rádio ao jornalista Osvaldo Ferrari, em 1984 e 1985, Borges revelou o processo criativo de seu conto A memória de Shakespeare.
“(…) me foi revelado por uma frase de uma personagem em um sonho. Eu perdi todo o resto do sonho, mas me lembro da frase: ‘Eu lhe vendo a memória de Shakespeare’, e eu pensei, bom, a ideia de vender é muito comercial pra mim, ‘doar’ é um pouco pomposa, de maneira que ficou reduzida a ‘Eu lhe darei a memória de Shakespeare’, ou seja a memória pessoal de Shakespeare” (P. 101)
O conto é um relato em primeira pessoa de um personagem que se chama Hermann Soergel. Ele é um alemão que estuda a obra de Shakespeare e, certo dia, após um congresso shakespeariano, Soergel ouve a lenda de um mendigo local que possuía o anel de Salomão, cujo poder seria entender a língua dos pássaros. Na roda de conversa, um tal de Daniel Thorpe afirma que a lenda não é falsa. E quando restam somente Soergel e ele, Thorpe afirma ter a memória de Shakespeare. Inclusive que pode passá-la a quem quiser, desde que o receptor aceite. Soergel havia dedicado a vida a estudar a vida de Shakespeare, de forma que achou nada mais justo do que ele receber tal memória. No entanto, na sequência do conto, conforme a memória vai se revelando, o protagonista-narrador passa a vê-la como uma maldição.
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Jorge Luis Borges escrevendo em 1963 (Foto: Alicia D’ Amico)
Há um trecho do conto em que nos é dada a impressão de que todos teríamos acesso à mesma memória: “O acaso ou o destino deram a Shakespeare as triviais coisas terríveis que todo homem conhece; ele soube transmutá-las em fábulas, em personagens muito mais vividos que o homem cinza que sonhou com eles (…).”
A memória do bardo inglês vai se revelando ao personagem como uma “memória de ouvido” muito mais que visual. Em dado momento do conto até surge a expressão “o incomparável ouvido de Shakespeare”.
As consequências de receber uma memória tão incrível para a humanidade se revelam numa espécie de conclusão do conto:
“Na primeira etapa da aventura senti a felicidade de ser Shakespeare; na última, a opressão e o terror. No início, as duas memórias não misturavam suas águas. Com o tempo, o grande rio de Shakespeare ameaçou, e quase afogou, meu modesto caudal. Percebi com temor que estava esquecendo a língua de meus pais. Já que a identidade pessoal baseia-se na memória, temi por minha razão.”

O escritor como receptor de revelações

Não só seus contos acompanham a tendência da literatura fantástica, de algo mágico acontecer em um momento qualquer, como o próprio Borges é, por si próprio, uma espécie de narrativa fantasiosa. Retornemos a declaração que concedeu a Osvaldo Ferrari: “[o conto] me foi revelado por uma frase de uma personagem em um sonho”.
Esta ideia do escritor ser um “receptor” de narrativas ecoa na avaliação que Borges faz da Bíblia, de como apesar de haverem vários autores, a crença dos judeus é que ela foi ditada “pelo Espírito”; ou no caso dos gregos, pela musa. Logo a habilidade do escritor seria acessar estas memórias, ou ser acessado por elas, e transformá-las em fábulas, em literatura.
Borges cumpriu bem seu papel.
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Referências:

BORGES, Jorge Luis. Sobre a filosofia e outros diálogos. – São Paulo: Hedra, 2009.

_________________. Nove ensaios dantescos & a Memória de Shakespeare. – São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
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