quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

O que é um romance? Moby Dick responde


Dom QuixotePsicose e Moby Dick para entendermos o “problema das variações”, a estrutura da qual se constitui um romance.

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Ilustração de Jared Muralt
Há um parágrafo capital no livro Romance das origens, origens do romance, de Robert Marthe, para quem quer entender “o que é o romance?”. Vejamos:
“(…) o romance faz rigorosamente o que quer: nada o impede de utilizar para seus próprios fins a descrição, a narração, o drama, o ensaio, o comentário, o monólogo, o discurso; nem de ser a seu bel-prazer, sucessiva ou simultaneamente, fábula, história, apólogo, idílico, crônica, conto, epopeia; nenhuma prescrição, nenhuma proibição vem limitá-lo na escolha de um tema, um cenário, um tempo, um espaço, nada em absoluto o obriga a observar o único interdito ao qual se submete em geral, o que determina sua vocação prosaica: ele pode, se julgar necessário, conter poemas ou simplesmente ser ‘poético’.” (pg. 13-14).
Portanto, como definir este gênero? Existe limite para o romance?
Podemos começar a pensar naquele que é considerado, por muitos, o primeiro romance:Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes. Poderia ser somente mais um livro de cavalaria entre tantos outros, mas aí entra o gênio de Cervantes. O Quixote transcende seus contemporâneos quando narra a história de um homem que, após ler inúmeros livros de cavalaria, passa a compreender o mundo ao seu redor a partir do que aprendeu lendo. Temos aí loucura, metalinguagem, o arquétipo da dupla de personagens – o herói e seu fiel ajudante trapalhão –, contos e poemas dentro do romance entre outras artimanhas do gênero.
Isso tudo se enquadra no mais importante para existir um romance: as variações. Em um grande livro do gênero, nunca encontramos uma constância narrativa. Por exemplo, seria um equívoco esperar de um romance uma regularidade de cenas violentas na história inteira. Mesmo em um livro que traga um psicopata como protagonista, temos momentos de tranquilidade, de volta a infância, etc. Em Psicose, de Robert Bloch (romance eternizado no cinema em 1960 por Alfred Hitchcock), não começamos com um assassinato, mas com uma cena inocente de discussão entre mãe e filho de um lado, e o amor impossível de Sam e Marion de outro. Nada mais corriqueiro. Apenas por este motivo os assassinatos são impactantes quando acontecem.
Um ótimo exemplo para entendermos estas “variações que constituem um romance” é Moby Dick. Sem dúvida alguma, um livro à frente do seu tempo. Lêdo Ivo em As obras-primas que poucos leram diz que “Só aos poucos [...] a crítica foi aprendendo a colocar esta obra-prima de Herman Meville na sua exata dimensão”(pg. 205). E Malcom Cowley (em The Literary Situation) afirma que o principal trabalho de três décadas nos Estados Unidos, a partir de 1920, não foi qualquer livro de Hemingway ou Faulkner, mas sim a aceitação de Moby Dick como um épico americano – muitos anos depois de Melville ter morrido com certa obscuridade e falta de reconhecimento.
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Ilustração de Jared Muralt
No entanto, alguém que lê a sinopse de Moby Dickpode se perguntar: o que há de grandioso numa história de um velho pescador que sai para caçar uma baleia branca? A princípio pode parecer mais uma aventura – tal qual a diversão que se encontra em um filme de Indiana Jones, nada contra –, mas há muito mais ali, pois estamos falando de um grande romance. Como define Lêdo Ivo, Moby Dick é:
“Conflito do homem com a natureza, luta do indivíduo com o seu destino, combate entre o Bem e o Mal, mistério supremo da existência, sucedâneo de Deus – qualquer que seja a simbologia atribuída à baleia de Melville, ela tem resistido, como O Castelo de Kafka, a interpretações fechadas. Só isso bastaria para dar uma medida da sua universalidade, no tempo e no espaço” (pg. 205).
As possibilidades interpretativas e simbólicas são o que constroem os grandes romances, quando aliadas às citadas “variações”, formando uma só conjuntura. Em Moby Dick, temos a cena hilária do narrador Ishmael tendo que dividir a cama com o canibal Queequeg, além de outra cena em que o imediato Stubb obriga o cozinheiro a pregar um sermão cristão para os tubarões. Acompanhamos também as músicas cantadas pelos marinheiros, e as longas explicações que o narrador dá sobre a biologia das baleias, semelhantes a ensaios sobre esses cetáceos. No entanto, encontramos no coração das caçadas um ritmo frenético de narração, como se assistíssemos à cena de um filme de forte tensão – isso em um romance escrito muito antes da aparição da sétima arte. E Meville vai variando, carregando por centenas de páginas, tudo num ritmo certo. Demoramos mais de cem páginas para entrar no barco Pequod, porém quando chegamos lá, encontramos o poderoso Ahab, cuja a história revelada exercerá em nós fascínio e medo.
Constatamos que estamos diante de um romance quando nos envolvemos nesta viagem que ele nos propicia – seja interna ou externa –, transitando entre as variações que tornam a história possível. Seja ao acompanharmos as trapalhadas de Dom Quixote e Sancho Pança, o psicopata Norman Bates, ou a caçada à baleia branca.
Referências:
BLOCH, Robert. Psicose. Rio de Janeiro: DarkSide Books, 2013.
CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote de La Mancha. São Paulo: Penguim Classics Companhia das Letras, 2011.
IVO, Lêdo. Moby Dick de Herman Meville. In: SEIXAS, Heloisa (Org.). Obras-primas que poucos leram. – 2ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2005.
MARTHE, Robert. Romance das origens, origens do romance. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
MEVILLE, Herman. Moby Dick, ou a Baleia. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
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